quarta-feira, 28 de março de 2012

O meu vizinho

É quando a espertina bate forte que tenho oportunidade de apreciar o talento ronqueiro do meu vizinho do lado. É como ouvir pedras rolantes apenas pelo subwoofer. Pus-me a pensar nas consequências disso a longo prazo na estrutura do edifício e na minha saúde. Penso que reverberação provocada pelo ressonar deste talentoso vizinho não trará no futuro problemas estruturais ao edifício, a não ser que ele se babe muito - não se deve subestimar o poder destrutivo duma infiltração. Mas, em relação à saúde, é diferente. Lembro-me bem das minhas colegas de Engenharia do Ambiente estudarem os malefícios das baixas frequências nas nossas habitações e consequente potenciamento no desenvolvimento de cancros. Com a destruição progressiva do Sistema Nacional de Saúde e do nosso poder de compra é algo a ter ainda mais em atenção. Logo, preocupa-me.

O interesse pelo talento vocal do meu vizinho fez-me levantar da cama, e com a ajuda da guitarra, determinei que ele inspira num sofredor Fá sustenido e espira em Fá arrastando-se até encontrar a paz num Lá sustenido - ele gosta de notas com acidentes! Outra idiossincrasia dele é que repete à exaustão a mesma frase melódica, salvo esporádicos improvisos. A distância entre o fá sustenido da inspiração e o fá da aspiração perfazia um intervalo de sétima maior e, portanto, se tocadas as duas notas ao mesmo tempo, realizar-se-ia um acorde com som dissonante. Um acorde dissonante caracteriza-se por provocar uma sensação de desconforto, de tenção, consequência da colisão de notas não totalmente compatíveis. Admito que pudesse ser já alguma paranóia provocada pela privação de sono, mas comecei a ficar angustiado ao imaginar que se, por acaso, desse na cabeça deste meu vizinho ronqueiro fazer um acorde, isto é, inspirar e aspirar ao mesmo tempo, ele poderia provocar sérios estragos, não só estruturais no edifício e na minha saúde, como danificar-se seriamente a ele próprio. Além da baba, jamais se deve subestimar o contacto directo com acordes dissonantes. Contudo, seria um toque muito Jazz.

Esperando em vão que o meu vizinho optasse por conceitos melódicos mais adequados para me embalar até ao sono, foquei de seguida a minha atenção no arrastamento do fá até ao lá sustenido que ocorria em cada aspiração. Estamos aqui na presença dum virtuoso! Ocorre contudo aqui uma questão: será este deslizar duma nota até à outra consequência dum portentoso aparelho vocal e respiratório do dorminhoco, ou o meu vizinho enquanto curte o seu REM está em movimento? Se ele estiver em movimento, estamos então na presença do conhecido Efeito de Doppler.

Continuei a analisar a obra e o processo artístico do meu vizinho. Como o som no arrastamento vai ficando mais grave, sei imediatamente que o meu vizinho se afasta. Estando ele a ressonar um fá (21.8268 Hz) e terminando eu a ouvir um lá sustenido (14.5676 Hz), tendo em conta que, estou parado e o som desloca-se a 343.4 metros por segundo, determino assim que o meu vizinho dorme à velocidade de 171.12 metros por segundo nas fase de aspiração. Repito: estamos na presença dum virtuoso. Esta abordagem de manipulação do som por deslocamento explica muita coisa, entre elas, o porquê do meu vizinho ter passado a poupar na gasolina e encontra-lo regularmente no comboio nos dias em que não ressona, o porquê de estar sempre despenteado, e inclusivamente, explica o porquê de ele continuar solteiro. Felizmente, do lado daquela parede não oiço duetos em polirritmia.

É inspirador. Como músico penso fazer o mesmo. Ou talvez, pelo andar das coisas, não tenha alternativa e vou antes a 171.12 m/s para ao Brasil, Angola ou até ao Congo (!) com esta técnica. Dizem que ainda precisam por lá de engenheiros.

Mas se o meu vizinho só se desloca durante as aspirações, então durante as suas peças musicais o que evita ele andar em linha recta? Ele é aficionado de miniaturas de comboios, e ai estará a resposta. A minha tese é que tem a cama montada sobre carris. A 171.12 m/s de velocidade posso orgulhar-me de viver ao lado dum TGV. O progresso chega quando menos estamos à espera. Ora, o quarto dele deve ter uns 4 metros de largura, se os carris formarem uma circunferência de 2 metros de raio, então fico a saber que ele sofre na repetição de cada linha melódica cerca de 1494 força-G. A tese do efeito Doppler ganha força. É um virtuoso!

Na próxima vez que o encontrar peço-lhe um ortografo. Nos dias que correm devemos acarinhar os nossos artistas. Quando o governo espatifa no BPN cerca de 50 vezes o orçamento do Ministério da Cultura, são pequenos gestos que motivam um artista, sobretudo como o do meu vizinho que cria algo tão vanguardista em termos vocais que só terá meia-dúzia de fãs (que o querem matar).

Após uns 30 minutos de Jazz vanguardista vindo do outro lado da parede, ouviu-se uma longa inspiração seguido dum estridente acorde final - acorde maior de sétima maior - dissonante. Fez-se silêncio!

1 comentário:

cid simoes disse...

«Não posso comentar... fiquei sem fôlego.»