A Crise... ou A Peste, de Camus?
A intenção do narrador não é, entretanto, dar a essas equipes sanitárias mais importância do que elas realmente tiveram. No seu lugar, é verdade que muitos de nossos concidadãos cederiam hoje à tentação de lhes exagerar o papel. Mas o narrador está antes tentado a acreditar que, ao dar demasiada importância às belas ações, se presta finalmente uma homenagem indireta e poderosa ao mal. Pois, nesse caso, se estaria supondo que essas belas ações só valem tanto por serem raras e que a maldade e a indiferença são forças motrizes bem mais frequentes nas ações dos homens. Essa é uma ideia de que o narrador não compartilha. O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons que maus e, na verdade, a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é a isso que se chama virtude ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza, então, a matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem belo amor sem toda a clarividência possível.
É por isso que nossas equipes sanitárias, que se concretizaram graças a Tarrou, devem ser julgadas com uma satisfação objetiva. É por isso que o narrador não quer ser o propagandista por demais eloquente de uma vontade e de um heroísmo a que atribui uma importância apenas razoável. Mas continuará a ser o historiador dos corações de nossos concidadãos que a peste tornara dilacerados e exigentes.
Com efeito, os que se dedicaram às equipes sanitárias não tiveram um mérito tão grande em fazê-lo, pois sabiam que era a única coisa a fazer, e não se decidir fazê-lo é que teria sido incrível. Essas equipes ajudaram nossos concidadãos a penetrar mais na peste e persuadiram-nos, em parte, de que, uma vez que a doença existia, deviam fazer o necessário para lutar contra ela. Uma vez que a peste se tornava o dever de alguns, ela surgiu realmente como era, isto é, como o problema de todos.
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